sexta-feira, 30 de julho de 2010

Regresso

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O vento soprava os remos, na força com que o olhar sonhava. Os corpos faziam-se ao largo atraídos pela corrente invisível. Senhor da tarde, o tempo descia sobre a paisagem. A água beijava a pele enquanto os pés esqueciam-se de procurar caminhos. Ali não poderiam deixar pegadas. As braçadas ligavam margens não tocadas que se fechavam sobre a privacidade daquele lugar que a natureza proporcionava, como um segredo onde ninguém poderia chegar. A liberdade sobrevoava em asas supremas, soberanas do céu. Só a vista alcançava os cumes levantados no horizonte. Só a imaginação se precipitava para além da fronteira. Ia mais longe do que os limites admitem. Só o desejo deu as mãos à realidade e uniu a vontade única. A possessão nasceu da entrega. O inusitado foi real. A primeira vez aconteceu como que um regresso de que se não quer partir. Ficar na certeza de querer voltar e procurar na superfície da albufeira marcas dessa corrente em que me quero deixar arrastar.
… até esse momento passado que me presenteia com a vontade de ser, de novo, hoje num dia futuro.

Falta


Quando o silêncio é o único ruído
que risca as paredes erguidas pelo tempo
por entre vales,
onde as horas correm como rio dengoso
sem margens,
falta o ouvido onde dizer as palavras,
falta a voz para ouvir o nome,
falta a mão para tocar a carne,
falta a pele para arrepiar o abraço,
faltam os lábios para molhar o sorriso,
falta a boca para afogar o beijo,
falta o burburinho de vida,
o pulsar,
a resposta,
a pergunta,
o estar.

Quando um vento frio
atravessa a alma,
movimenta as portas,
range o soalho
e levanta as folhas,
caem as palavras secas pela inoportunidade,
perdem-se os passos urdidos na corrida,
abalam as memórias disfarçadas de desejo,
alonga-se o mutismo no tempo que não corre
e enchem-se as mãos, deixadas vazias,
duma solidão sórdida que envelhece as horas,
passando como brisa na pele que esfria.


quinta-feira, 29 de julho de 2010

O caminho solitário do individualismo


Na inconsciência do individualismo traçamos rumos de isolamento. Estradas que se teima percorrer sozinho sem perceber que um dia, porventura, será demasiado tarde para que tenhamos a companhia que hoje julgamos não precisar, mas cuja ausência, amanhã, nos afundará numa viagem solitária, dolorosa e irreversível.

Sentir


O sentir não se comunga;
por vezes... coincide-se nele.


Palavras sem voz


Tiras-me a sede dos lábios
quando a fresta se perde
na porta por fechar
e só as nuvens perduram
no céu por anilar.

Afugentas-me o brilho do olhar
quando a melodia se cala
no dia por terminar
e só a indefinição permanece
no tempo por preencher.

Extingues-me o sorriso da pele
quando o vazio alaga
o eu em que me ofereço
e a esperança se desilude
num inconsequente adiar.


Silêncio,
monólogo sem palavras,
mesa para um,
lugar único,
passos desacompanhados,
casa vazia,
noite longa no dia infinito,

não me quero sentir,
numa vida gasta
sem destino!

El Secret de Sus Ojos

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Quando o presente se enche de vazio e se parece ter chegado à estação derradeira inundada de nada, o passado torna-se caminho único. No álbum de lembranças começam a recolher-se instantes que parecem convictos, mas que acabam por transparecer a incerteza da recordação, a diafanidade do que foi vivido sem o ímpeto do querer.

Regressa-se a pormenores, agora, com o olhar da distância turvado pela necessidade de compreender melhor, detalhes forçadamente esquecidos e ignorados. Hoje a maturidade e a posterioridade permitem rever, com acrescentos, pedaços da vida armazenados nas memórias. Busca-se resposta e resolução para o que não se conseguiu contestar e explicar.

O que se faz para viver uma vida vazia? O que fazer quando o presente parece demasiado tarde para alterar o passado a que se fugiu? Escrever com verdade uma ficção. Não desistir de encontrar e de nos encontrarmos. Perceber que o amanhã também é futuro que nos pertence. Acreditar. Pegar no ‘temo’, que o inconsciente fez escrever nas horas perdidas duma noite solitária, e descobrir que apenas lhe falta o ‘a’ que a máquina se recusava escrever. E resolver avançar e constatar que, afinal, não são precisas palavras quando o segredo está no olhar.

Inquestionável, ainda que sem termos comparativos, o merecimento do Óscar 2010 do melhor filme estrangeiro, para El Secreto de Sus Ojos, do argentino Juan José Campanella. Sublime a simplicidade e beleza com que transmite como a resolução de pequenos instantes que se adiam, ou ignoram, podem encher uma vida que se tinha como vazia. No querer está a decisão.

Hoje


Não tenho tempo para adiar a vida!
As horas que agora me sobram,
poder-se-ão esgotar subitamente.
Porventura nem oportunidade terei
para enumerar o que desperdicei e não fiz.
Quero adormecer com a sensação de tê-lo feito…
Hoje!!!

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Caetano Veloso no Coliseu de Lisboa

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Ao subir do pano, Caetano Veloso está na boca de cena secundado por três jovens que compõem uma banda de sonoridade rock. É nela que Caetano viaja, ao longo de aproximadamente duas horas, pelas canções do seu último álbum Zii e Zié. É nela que revisita alguns – poucos – temas clássicos, com esta nova roupagem.

Irreverência? Inquietude? Necessidade de mostrar-se actual? Capaz de acompanhar novas ondas musicais? Apto a cruzar os mais recentes céus da composição? Tentando captar novas gerações?

Caetano apresta-se para celebrar o sexagésimo oitavo aniversário, dentro de dias. Sim! Mexe-se no palco, tentando mostrar não os possuir. Mas sabemo-lo ser um sexagenário avançado. Traçou e percorreu um caminho que angariou infinitos fãs. E foi, quando se sentou sozinho, com o violão nos joelhos, para interpretar Desde que o samba é samba, que se viu o verdadeiro, o amado Caetano. Precisará de mostrar-se competente para abraçar novos rumos musicais?...

As interpretações dadas a temas como Trem das cores ou Força Estranha, ainda que cantadas em coro, pelo Coliseu lisboeta, nada lhes acrescentou.

No final, sai-se com o prazer de [re]ver, ao vivo, esta figura proeminente da música brasileira. Contudo, fica um certo sabor perdido de não ter havido mais daquele Caetano intimista que nos prende nos acordes viajantes pelo braço do seu violão e nas letras de tantos hinos que escreveu. Em mim, ficou uma certa saudade do Caetano evocador daquela figura discreta com quem me cruzei, numa noite dum ido Abril de 1987, no Rio de Janeiro…

Adivinho-me



Adivinho-me
neste corpo onde entorpeço
mas esqueço
que conheço,
para me sentir barco
em busca de porto por violar
sedento dum afago
que no desejo trago
e estendo num abraço,
na tribuna dum olhar,
no sótão dum pensamento
ou simplesmente na rede
das palavras que te leio
descobrindo que me ofereces
o corpo em que te esqueces
quando no meu adormeces.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Assento *



Assento
onde me sento
e assento,
acento
com que acentuo
esta malha
em que me teço,
enquanto desfaleço
e levanto
deste lamento
em que canto
e me pranto
até que desapareço,
sem apreço
e me levanto
num voo
sem descanso,
onde me canso
e me amanso
até que chego
ao sossego
deste descanso
onde me sento,
com remanso,
neste assento
onde adormeço
num sonho
de que desconheço
o preço.


* inspirado em 'volto logo'

domingo, 25 de julho de 2010

Os corpos no singular


Os corpos passeiam nus
pela casa,
pelas horas,
pelo tacto das mãos que os tocam,
pelo segredo dos olhares que os captam.
Um sorriso sussurra-lhes desejo
e o desejo sorri-lhes.
E quando o amor se deita
nos lençóis que os cobre,
vestem-se um no outro
e despindo o plural
fazem-se, em entrega, singular.

sábado, 24 de julho de 2010

Realidade adivinhada



Respiro nas mãos
contornos roubados,
estampando em versos
o suor
que me secas na pele.
Se eu adivinhasse
silhuetas do teu desejo
encerrava em rotas secretas,
revelações abertas
que o teu prazer
deixa em mim.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Cicatrizes da escrita


Faço da escrita um naufrágio
onde me afundo,
para depois me reacender,
com as palavras
abro feridas
que preciso fazer sangrar
na espera de as ver sarar
e as cicatrizes ficam
como leituras possíveis
… de mim.


Na convalescença da noite


No corredor, corre o silêncio induzido às dores adormecidas,
a anestesia das enfermidades
visita cada quarto num corrupio invisível,
na minha cama, onde o sono não se deita,
curo palavras para oferecer ao novo dia.


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Desejo em jeito de telegrama


Não antecipes a chegada ao destino de que não podemos fugir.
Não precipites a vida que te pertence.
Sê livre! Depende de ti!

terça-feira, 20 de julho de 2010

Distante


Distante…
como se o vento separasse continentes
unidos pelo oceano,
como se a ausência afastasse lábios
sequiosos por um beijo,
como se o silêncio desviasse palavras
necessárias de ouvir,
como se a dor apartasse corpos
desejosos dum abraço,
como se um navio se tivesse desprendido
por ter alongado demasiado as amarras.

Sem horas


Trilho o caminho
de passos sem destino,
pontapeio as horas
como pedras perdidas
esquecidas de serem usadas,
o vento enxuga-me as lágrimas
para que os lábios secos
não se salguem na noite solitária.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Vagamente... vago



Na vaga dum tempo vago,
procuro uma toada vaga
dum movimento vago.
Perco-me na vaga de sentimentos
em que vago
no torpor de encontrar
um tempo vago, onde vagar.
E vago o meu corpo
para que o ocupes com o teu,
num tempo vago…
e eu possa de.morar,
de.vagar em ti.



sábado, 17 de julho de 2010

[Des]adormecer


Nos lençóis imaculados
deita-se a noite virgem,
cobre-se com o corpo desnudado
de pensamentos desenrugados,
de sonhos desamarrotados,
de amanhãs desenxovalhados.
Entre abraços desdobrados,
carícias desenroladas
e afectos estendidos,
adormeço o desejo
até que o teu chamamento o desflore.

domingo, 11 de julho de 2010

Onde guardar o futuro?


Deito-me no teu corpo
e nos teus lábios bebo vida
que o tempo enterra num calabouço
a que chama passado.
Entrelaçam-se as mãos
num aglomerado de horas
transeuntes em planícies de carícias
semeando com olhar a pergunta:
‘Onde guardaremos o futuro?’


sábado, 10 de julho de 2010

Não me reconheças


Caminha em busca daquele endereço
onde o verso se escreve sem poema.
Canta aquela melodia que te derrete o peito
como o pássaro desperto pelo alvorecer.
Bebe um trago de tempo
como a sede que te acorda a incerteza
de te concederem o prazo ansiado.
Deita-te no dia adormecido
cobrindo-te com o corpo que te atiça o desejo.
Não regresses!
Não permaneças!
Vai, de mão entrelaçada na minha…
Não saibas ser eu que te acompanho!
... mas antes aquele ser que não te pertence
e que, por isso mesmo, cobiças!

O desejo não se lê


No teu corpo
escrevo-me poema de desejo,
solto em carícias
versos demandando a tua rima,
aporto de viagens
cantadas no segredo de te querer
porto onde derramar
a exaustão da espera
dum fogo que arde,
nesta escrita que não se lê.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O que fazer?


O que fazer
quando o tanto que te ofereço,
parece tão pouco
para que percebas
que o muito que te quero,
me torna insaciável?...

És maré no oceano do meu querer,
dia na duração duma vida,
sorriso na felicidade incomensurável,
mão na extensão do corpo,
beijo único em lábios imortais,
tempo efémero na eternidade do sentimento…

Vamos!


Desfraldo os panos
para que em vento te sopres
nas velas dos meus sonhos;
Abraço marés
nas rotas que em mim traças
para contigo navegar;
Somos extensão do que fomos,
antecipação do que desejamos ser;
Entrego-te as asas
com que alas os meus dias…

Vamos!

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Refluxo II



Leva-me no refluxo
da onda em que te transformas
para recolher as minhas pegadas
na maré em que te enrolas
e guardas no mar peito
com que me abraças e embaraças.
Limpa a areia onde me escrevo
e da espuma em que te deixas,
rasto de desejo velado,
segreda-me a direcção dos trilhos
que comigo queres escrever.

Tão pouco


É tão curta a distância
da felicidade à tristeza
qual fogo que devora
toros de paixão ardente.

É tão ínfima a vida
no pedaço que se a saboreia
como paladar recordado
duma memória a que não se volta.

É tão curta a sorte
do amor que perde âncora,
como é súbita a morte
neste percurso de dias
que não me permite rédeas.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Egoísmo


Quero-te vida
onde me descobri
no renascer dos dias
Quero-te vida
onde vivo
na vontade de permanecer
Quero-te vida
para além do meu viver!

Feitiço escondido


Procuro-te nos lábios,
feitiço escondido
na sombra do espelho,
o sorriso sede
dos beijos onde me encontro.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Nudez

© yd84

CONFESSO: sou dependente. Não da cafeína, da nicotina, da cocaína, nem de outras substâncias afins. Não as consumo, nunca o fiz! Não recorro a estimulantes, anti-depressivos, estupefacientes ou ervas narcóticas para ‘auxiliar’ o meu estado de espírito. Nunca os experimentei. Não quero que mandem em mim. Quero ser EU sóbrio na minha fragilidade, ou alegria, ou tristeza, ou prazer, ou depressão, ou força, ou solidez, conforme a natureza daquilo com que me cruzo e do que me proporciona. Mas assumo: sou dependente! … do sucesso, do reconhecimento, da fuga ao vazio, do afecto, do amor [sentimento e acto], da amizade, da palavra, do ego ‘massajado’, da atenção, da partilha, da transparência, da seriedade, da frontalidade… por isso, se me virem por aí moribundo, não chamem o médico, nem me recomendem curativos. Percebam que sou assim sem qualquer película artificial a escamotear a minha verdade, sem qualquer máscara a pretender fazer carnaval nos meus dias [talvez por isso não gosto do Carnaval]. Quando o meu estado recuperar, sei que o consegui pelo meu pulso e com a ajuda dos que me facultaram algum dos ‘produtos’ de que sou dependente. CONFESSO que sou!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Pegadas


Ainda que te arrependas,
não terás porque apagar as pegadas por onde passaste.

Melhor do que negá-las será assumir a contrição.
Mais livre te sentirás
para voar e para que as tuas asas sejam o meu rumo.

Que a pergunta não desista de ser posta

© Amir Sfair Filho


Cinco anos… sobre o 5 de Julho de 2005. O tempo é agente diluente de muito por onde passamos e vivemos. Basta que nos afastemos, que nos tornemos ou nos tornem distantes. Mas há cicatrizes que mesmo saradas continuam na nossa pele. Especialmente se a nossa pele foi a roupagem que quisemos usar para vestir o empenho entregue àquilo em que acreditámos. Contudo há cicatrizes que mesmo saradas nos derramam amargura quando lembradas. Todavia há vultos do que fomos e nos impediram de continuarmos a ser, que permanecem no nosso eu. Cinco anos… passam hoje cinco anos sobre a data em que decidiram que não poderíamos mais ser. O tempo vai estancando o sangue perdido na ferida. Mas o tempo nunca será suficiente para lembrar que jamais será compreendido o que não tem explicação. As justificações esbatem-se no tempo. Acima de tudo porque nunca o foram. Mas o tempo faz esquecer de perguntar. O cansaço provoca a desistência. Num pequeno fôlego, hoje, permito-me perguntar e repetir: de que forma a dança e a cultura portuguesas beneficiaram com a decisão anunciada ao princípio da tarde do 5 de Julho de 2005, àqueles que apenas eram a continuação de gerações anteriores que tudo fizeram para levar longe o nome do Ballet Gulbenkian e, consequentemente, da própria instituição que o criara? Alguém tem a resposta?


domingo, 4 de julho de 2010

Praia em mim


Estarei naquela praia,
mais logo, onde estou
ânsia que me enche
e me vaza,
aguardando um passo forte
num tempo frágil
como maré vulnerável
que se enche
e se vaza
e eu serei veia
à espera que sejas sangue
correndo em mim.


sábado, 3 de julho de 2010

Sílaba



                                                                                   Sou sílaba
                                          … perdida entre as vestes da palavra
                                                  … farrapo dum acreditar adiado
                                                … travada para ocultar a verdade
                                                … tónica dum silêncio prolongado
                                         … adormecida na espera dum instante
                                                  … gelada num sorriso por despir
                                                  … calada no início duma canção
                                         … agonizando num verso por concluir.


Horizonte do amor


Onde semeias
dias de reclusão,
nascerá o silêncio
e com ele a distância;
esgaça-se a intimidade
e um muro ergue-se
no território onde pontes
haviam sido edificadas
sobre um rio de perfume,
esperado em braços abertos
nos peitos retidos como foz
de abraços,
selos,
sorrisos de vida…

fica tão breve o horizonte do amor!