segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sangue do meu sangue


O cinema português, por vezes, permite-nos alertas que valorizam a escassez de meios com que trabalha. As restrições de recursos e as limitações orçamentais para produção ‘obrigam’ a criatividade; em vez de se conceber a janela desejada e engrandecida, há que explorar a[s] forma[s] diferente[s] de olhar para uma janela comum, quiçá cansada de tanto ser olhada.

Em Sangue do meu sangue, de João Canijo, não é argumento - por infelizmente terem entrado na nossa rotina as surpresas que o deixam de ser e as desditas a que nos habituámos - que nos prende nos 140 minutos de duração. São alguns pormenores técnicos, a que o realizador repetidamente recorre, que nos prendem e acabam por se transformar marca do filme. Detalhes que se constroem sem meios especiais, apenas usando a já referida criatividade, a imaginação e o cunho pessoal artístico.

São planos que concedem prioridade ao pormenor, focando detalhes eleitos com minúcia em detrimento de tudo quanto os rodeia. Importância que lhes é reforçada quando esse detalhe sai do ângulo de visão e tudo o que fica permanece carente de nitidez.

Um segundo pormenor é a quase ininterrupta permanência de uma ambiência sonora combinada com o som da cena tida como principal. Uma necessidade de alertar para a impossibilidade de apagar sons que nos rodeiam, se somos elementos dum universo onde não estamos sozinhos. Sons e ruídos que talvez não valorizemos, mas que existem e persistem para além da nossa escolha. A intenção de mostrar que os sons têm vida para além da nossa voz.

Porventura, com a mesma intencionalidade, Canijo recorre a planos que revelam mais do que a cena que teríamos como a principal. Planos que nos mostram a sobreposição de cenas e nos chamam a atenção para a relatividade que poderá ter o que consideramos mais importante. Para lá da janela que queremos observar existe um outro drama tão ou mais forte do que aquele que vive para lá da parede. Para lá da montra vive a intensidade dum sentimento tão ou mais verdadeiro do que aquele que nos é transmitido do lado de cá do vidro. Na divisão contígua a dor é tão insuportável quanto a que adivinhamos para lá da ombreira da porta.

Seremos muitos os fascinados pelo ritmo do cinema americano, pela sua capacidade de ficcionar o real, transportando-nos inúmeras vezes para um patamar imaginativo, mesmo quando nos relata o quotidiano. Porém, há cinema português a quem os parcos recursos proporcionados obriga a improvisar, a criar… talvez falando-nos com mais verdade da realidade.

Mais do que construir o que a câmara vai ‘olhar’, há um cinema português que explora as diversas possibilidades da câmara poder olhar o que todos os olhares podem percepcionar. E aí… existe Arte!

1 comentário:

Sopro Vida Sem Margens disse...

..a não perder...
sem dúvida alguma..

Que bela introspecção...