quarta-feira, 18 de julho de 2018

Fim


A minha partida não será anunciada.
Só o silêncio declarará que as minhas palavras também morreram. 

terça-feira, 31 de outubro de 2017

SONHO!


perguntas-me, com alguma frequência, se não sonho… e eu sem te dizer que, entre tanto, sonho com uma incaracterística manhã, junto ao mar. sentados, nós dois, numa esplanada. com um livro rasgando as horas. uma água e um café, o teu, sobre a mesa. e uma brisa de maresia. depois, depois preparar o almoço. com amor. fazê-lo. porque à hora da sesta será tempo de regressar-te. à pele. e, enquanto dormes, imaginar-me protagonista. num romance que nunca escreverei. ao fim da tarde voltar ao mar. se possível, molhar os pés na areia. salgá-los no oceano. porque o dia precisa de tempero. e os sonhos querem-se adoçados.
perguntas-me, amiúde, o que sonho… não precisas fazê-lo. quando pousas a tua cabeça no meu peito. e os teus dedos continuam a tactear estradas que tão bem conhecem. é noite. e o romance ainda não acabou. e sonhar contigo é uma viagem interminável.

sábado, 18 de junho de 2016

Quero

obra por identificar

quero noites escancaradas 
sobre o frémito dos sonhos,
o degelo da carne
rasgando-se em poema,
quero o imperativo de um voo
sobre a incerteza da manhã,
o tremor do branco
sobre a aguarela do gesto,
quero o murmúrio da dança
no corpo já sem endereço,
o ensaio da linguagem
nos silêncios sem nome
e o dicionário de teu olhar
entregando-se
ao desvelo da leitura.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

No teu ventre


no teu ventre nascem flores
como só aos deuses é possível. 

“E aos mortos!”, querem fazer crer…

"na nascente da vida!", asseguro eu,
que lhes conheço a fragrância.

sábado, 17 de outubro de 2015

Anoitecendo


senta-se
na margem extrema da tarde,
na espera pela noite;
quando ela chegar
despir-se-á
até que o seu brilho seja marca
no oceano de breu 
que nos fecha o dia.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Leituras


Eram muitas as palavras que se acumulavam em linhas e parágrafos e páginas e capítulos que ela lia. Aglomeravam-se como as pessoas na carruagem onde a manhã corria, sobre carris, rumo a um destino que parecia comum. Interrompendo a concentração da narrativa que o autor lhe oferecia, sentiu o olhar a seu lado invadir-lhe as páginas. Uma brisa há muito não experimentada, tocou-lhe o âmago. Espontaneamente assegurou-se de que a leitura seria possível a dois pares de olhos. E a descrição que seguia começou a ser conquistada por um questionar exterior: o que o levaria a seguir as palavras que em leitura lhe oferecia? Começou a demorar o virar de página com um espaço de tempo em que adivinhava a leitura dele já terminada. Sentia-lhe fervilhar, como se a ficção fosse realidade, a descoberta, a aventura, o desejo. Aos poucos a cidade ia apoderando-se de passageiros e a carruagem vazando. Com as páginas folheando-se a caminho do epílogo, as estações guardaram todos os viajantes. Na longa carruagem, agora, só ele permanecia com ela. Lado a lado, numa proximidade inquietante. Todos os outros lugares vazios. Desnecessários. No meio dos parágrafos imaginou-se transparente como a musselina da blusa que trazia vestida. Sonhava! que palavras se escreviam a partir da sua imaginação e ele poderia lê-las. Dizer-lhe mais do que as escritas no seu livro e que nesta manhã partilhava, inverosimilmente, com um desconhecido. Subitamente, ele levantou-se, encaminhou-se para a porta e na paragem seguinte saiu. Sem uma única palavra, sem um único olhar para além do que lhe deixara pelas linhas partilhadas, sem rasto. O livro ficou por concluir… quantas histórias haverá por terminar porque páginas ficaram em suspenso?... quantas viagens se diluem porque os destinos não coincidem?...

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

se eu pudesse tocar-te...


se eu pudesse tocar-te
perder-me-ia na sinuosidade da descoberta.
se eu pudesse tocar-te
embalaria em sopros, suspiros e percussões em surdina,
afinaria as cordas que me atam em ansiedade,
as mãos flutuariam entre a forma e o desejo,
e inventaria a sonoridade das gargantas abafadas.
se eu pudesse tocar-te
desafinar-me-ia em cada teu canto,
curvilíneo poema de um corpo por encantar.

... e a sinfonia na espera por um compasso desapertando-se.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Traz-me

© Christoph Hessel

traz-me
um abraço de pássaro,
ou um voo.

imensas asas
vergam-se
aos olhares dos homens
deslumbrados
peitos abandonando a criança
que não nega,
acredita
e vai.

encontrar-nos-emos
nas infâncias escondidas,
nas copas das árvores
contando as pegadas
das vozes levadas

mas por esquecer.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Em gritos


segura-me a pele
que já se despega.
tenho um grito
cravado no ventre
e outro
gravado na memória
quando nas arribas dos corpos
se abrem desfiladeiros
por onde a Primavera corre
incendiando os poros
em Verão.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ocaso


entardeço a cada pôr-do-sol,
para além de um horizonte
a que não chego mais do que com a fantasia.