quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Em gritos


segura-me a pele
que já se despega.
tenho um grito
cravado no ventre
e outro
gravado na memória
quando nas arribas dos corpos
se abrem desfiladeiros
por onde a Primavera corre
incendiando os poros
em Verão.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ocaso


entardeço a cada pôr-do-sol,
para além de um horizonte
a que não chego mais do que com a fantasia.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Falésia


Passeio pela música como poderia ser no topo de uma arriba. Num contínuo agudo, melódico e encantatório, ouço as fragas que te chamaram. Tocas no mar. E os dedos salgam as teclas. O vento rasga a paisagem e um insinuador tango arrebata os sentidos. Quem lhe consegue resistir? Quem não se deixa tentar por esse afoguear dos corpos? Ouço-te. Sorris. Ris como quem se vangloria da vitória por ter antecipado a partida. As tuas mãos também riam, antes de partires. Seduziam a vida como só os génios conseguem. Deixam-nos partidos, músicas inteiras, tocadas antes da tua partida. Restam-nos tempos interrompidos, preenchidos com expectativas de excertos que se completem. Antes de partirmos.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dias Especiais




era uma vez um tempo em que os dias especiais tinham data.

mas o rio da vida foi afundando esse sabor particular às datas que se distinguiam das demais.

hoje, os dias especiais não passam de casas meio vazias, por vezes habitadas pela surpresa de instantes dispersos que emudece as expectativas.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Por vezes...


trazes o cheiro a terra molhada
e versos, que não sabes,
escrevem-te desejos moldados ao corpo.
amanheces cores de madrugada
e eu lavo, em ti, meu olhar.
voa-te dos dedos a intransigência dos gestos,
mil vezes ensaiados em lençóis de linho vazio.
pouso a vida num teorema adiado
e desfaço em sementes o manto de solidão
... enquanto dizes bom dia
e me fazes caminho.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Ficarei *


ficarei!
um pouco mais
do que a despedida do sol.
para além
do caminho desenhado pela luz
e do adeus que prometo não dizer.
deixa-me ficar
no regresso do silêncio
que aplana o areal
e desvenda o espelho
onde o mar vem repousar.
deixa-me ficar
até que a maré
chame de novo
o coração ao mar
e o pesqueiro lance redes
onde o dia
nos virá acordar.


a partir da imagem entardecer, de sonja valentina



segunda-feira, 24 de março de 2014

Conselho

© Jen

não estendas o amor lá fora!
chove e ao frio retrai-se.
cá dentro há uma fogueira a pedir lume para arder.

sábado, 22 de março de 2014

Cárcere


desviem de mim os parcos raios de sol.
não quero calendários em contagem decrescente,
nem o merecimento de indultos,
enquanto tua volúpia me for cela,
sussurrando na escrita que me é ópio.

quinta-feira, 20 de março de 2014

A tua mão


a tua mão
esquecida sobre o meu peito...
esfriando na distância,
derrete a insistência de um fogo
há muito extinto,
congela horas cheias de vazio;
a tua mão
esquecida sobre o meu peito
é a fragilidade de abandonarmos vida.


terça-feira, 18 de março de 2014

Era...


era... talvez fosse um pássaro. só poderia ser uma ave que sobrevoou o cálice e, com uma brisa, ergueu uma lacónica ondulação na sícera intacta. só podem ser de asas, os rumores que se constroem em ninho, no meu peito. e que crescem em sismo abalando a lucidez, a racionalidade, a quietude. nada permanece vertical. perdi os passos, perdi o pé e o solo. mas para que precisaremos do chão, se caminhamos sobre nuvens? talvez seja um voo o que se alojou no meu peito e me roubou a sobriedade. ímpeto anónimo que calou a razão. doce embriaguez que me extasia, mesmo que ilesa a sícera continue no cálice. só eu sei destas asas que me tentam rasgar o peito... e o meu voo já vai mais longe do que os pássaros.

domingo, 16 de março de 2014

Página em Branco


não sei se é branca,
se indecifrável esta página
de escrita prometida
onde todos os dias
nos enfrentamos
por entre formalidades
que os olhares não conhecem
e só uma repressora
chamada razão
coíbe a tentação das mãos.

talvez de silêncios
se encha este poema
onde nos prometemos ardentes,
mas em que teimamos não pousar,
ainda que em fuga
como o fogo
corrente para a água
pensando:
é eterno o meu fervor
se me detenho em ti!

disfarçamos a sede…

quinta-feira, 13 de março de 2014

"Orfeu e Eurídice", de Olga Roriz, pela Companhia Nacional de Bailado

© CNB, Rodrigo de Souza [intérpretes: Filipa de Castro e Carlos Pinillos]

como um vento,
um rodopio de pensamentos
seduz-me e verga-me.

na crucificação da atracção
o grito toma corpo
numa dialéctica de lamentos.

há uma prece
e uma súplica de sangue
e um nome feito voz
em mortalhas de memória
por despir,
ecos do meu querer
feito pranto.

elevam-se voos de feminilidade,
bordados em mel
e na amplidão de asas.

sobre o frenesim de violinos,
sussurros espalham-se pelo chão
em pulsar universal.

desenha-se um círculo de âmbar,
sinto o intangível,
na ausência de ti
construo-te presença
em que só a pele te sabe
aroma recuperado,
abraço impraticável.

no reino de Hades
há jogos de invisibilidade
e cantam os anjos
serpenteando ,
por entre o vibrato das cordas,
a permissão de felicidade.

carregar-te-ei
rumo à vida.
segue-me! segue-me!
segue-me até que a tentação nos condene
e a multidão,
elegendo-se juiz,
nos separar territórios.
dançaremos!
encandeados pela luminosidade
que nos é visão
e cegueira.

depois…
depois, num labirinto de espelhos
a demanda de um rosto
que personifique a memoração
e justifique o crer.
depois…
depois fugirei,
tanto quanto possa
até ao lugar da morte
e aí me finarei
iluminado pela lua,
a única que ousa
roubar-nos em luz,
o sol.


domingo, 19 de janeiro de 2014

O Passado


Nem sempre é fácil, nos regressos, recusar aromas do passado. Ao regressar a Paris, para formalizar o rompimento com o passado, Ahmad, talvez não adivinhasse o quanto iria ter de mexer no seu passado, mas sobretudo o quanto o presente iria dificultar os passos imediatos para o futuro. Ao regressar, Ahmad, vê-se envolvido num trama de dilemas morais e emocionais que, frequentes vezes, mais do que realidades, são suposições com que as complexidades humanas fazem tremer os dias.

Quantas ruínas se poderão descobrir num regresso ao passado? Quantas feridas, abertas por mal-entendidos, ficarão por sarar por não se enfrentar, um regresso ao passado, com a capacidade de franquear a verdade e desmistificar segredos?


Com este regresso a um conflito familiar, em “O Passado”, Asghar Farhadi – vencedor do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro 2012 – revela-nos ainda que enquanto uns recusam aromas para romperem com uma vida passada de que tentam fugir no presente, para outros a fragrância do passado é a forma de devolver à vida quem se recusara a continuar presente.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Criação

© Arild Heitmann

invento um deserto
onde só existe a tua boca
e o oásis dos meus lábios.