O cinema português, por
vezes, permite-nos alertas que valorizam a escassez de meios com que trabalha.
As restrições de recursos e as limitações orçamentais para produção ‘obrigam’ a
criatividade; em vez de se conceber a janela desejada e engrandecida, há que
explorar a[s] forma[s] diferente[s] de olhar para uma janela comum, quiçá
cansada de tanto ser olhada.
Em Sangue do meu sangue, de João Canijo, não é argumento - por
infelizmente terem entrado na nossa rotina as surpresas que o deixam de ser e
as desditas a que nos habituámos - que nos prende nos 140 minutos de duração. São
alguns pormenores técnicos, a que o realizador repetidamente recorre, que nos
prendem e acabam por se transformar marca do filme. Detalhes que se constroem
sem meios especiais, apenas usando a já referida criatividade, a imaginação e o
cunho pessoal artístico.
São planos que concedem
prioridade ao pormenor, focando detalhes eleitos com minúcia em detrimento de
tudo quanto os rodeia. Importância que lhes é reforçada quando esse detalhe sai
do ângulo de visão e tudo o que fica permanece carente de nitidez.
Um segundo pormenor é a
quase ininterrupta permanência de uma ambiência sonora combinada com o som da
cena tida como principal. Uma necessidade de alertar para a impossibilidade de
apagar sons que nos rodeiam, se somos elementos dum universo onde não estamos
sozinhos. Sons e ruídos que talvez não valorizemos, mas que existem e persistem
para além da nossa escolha. A intenção de mostrar que os sons têm vida para além
da nossa voz.
Porventura, com a mesma
intencionalidade, Canijo recorre a planos que revelam mais do que a cena que
teríamos como a principal. Planos que nos mostram a sobreposição de cenas e nos
chamam a atenção para a relatividade que poderá ter o que consideramos mais
importante. Para lá da janela que queremos observar existe um outro drama tão
ou mais forte do que aquele que vive para lá da parede. Para lá da montra vive
a intensidade dum sentimento tão ou mais verdadeiro do que aquele que nos é
transmitido do lado de cá do vidro. Na divisão contígua a dor é tão insuportável
quanto a que adivinhamos para lá da ombreira da porta.
Seremos muitos os
fascinados pelo ritmo do cinema americano, pela sua capacidade de ficcionar o
real, transportando-nos inúmeras vezes para um patamar imaginativo, mesmo
quando nos relata o quotidiano. Porém, há cinema português a quem os parcos
recursos proporcionados obriga a improvisar, a criar… talvez falando-nos com
mais verdade da realidade.
Mais do que construir o
que a câmara vai ‘olhar’, há um cinema português que explora as diversas possibilidades
da câmara poder olhar o que todos os olhares podem percepcionar. E aí… existe
Arte!
1 comentário:
..a não perder...
sem dúvida alguma..
Que bela introspecção...
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