segunda-feira, 24 de março de 2014

Conselho

© Jen

não estendas o amor lá fora!
chove e ao frio retrai-se.
cá dentro há uma fogueira a pedir lume para arder.

sábado, 22 de março de 2014

Cárcere


desviem de mim os parcos raios de sol.
não quero calendários em contagem decrescente,
nem o merecimento de indultos,
enquanto tua volúpia me for cela,
sussurrando na escrita que me é ópio.

quinta-feira, 20 de março de 2014

A tua mão


a tua mão
esquecida sobre o meu peito...
esfriando na distância,
derrete a insistência de um fogo
há muito extinto,
congela horas cheias de vazio;
a tua mão
esquecida sobre o meu peito
é a fragilidade de abandonarmos vida.


terça-feira, 18 de março de 2014

Era...


era... talvez fosse um pássaro. só poderia ser uma ave que sobrevoou o cálice e, com uma brisa, ergueu uma lacónica ondulação na sícera intacta. só podem ser de asas, os rumores que se constroem em ninho, no meu peito. e que crescem em sismo abalando a lucidez, a racionalidade, a quietude. nada permanece vertical. perdi os passos, perdi o pé e o solo. mas para que precisaremos do chão, se caminhamos sobre nuvens? talvez seja um voo o que se alojou no meu peito e me roubou a sobriedade. ímpeto anónimo que calou a razão. doce embriaguez que me extasia, mesmo que ilesa a sícera continue no cálice. só eu sei destas asas que me tentam rasgar o peito... e o meu voo já vai mais longe do que os pássaros.

domingo, 16 de março de 2014

Página em Branco


não sei se é branca,
se indecifrável esta página
de escrita prometida
onde todos os dias
nos enfrentamos
por entre formalidades
que os olhares não conhecem
e só uma repressora
chamada razão
coíbe a tentação das mãos.

talvez de silêncios
se encha este poema
onde nos prometemos ardentes,
mas em que teimamos não pousar,
ainda que em fuga
como o fogo
corrente para a água
pensando:
é eterno o meu fervor
se me detenho em ti!

disfarçamos a sede…

quinta-feira, 13 de março de 2014

"Orfeu e Eurídice", de Olga Roriz, pela Companhia Nacional de Bailado

© CNB, Rodrigo de Souza [intérpretes: Filipa de Castro e Carlos Pinillos]

como um vento,
um rodopio de pensamentos
seduz-me e verga-me.

na crucificação da atracção
o grito toma corpo
numa dialéctica de lamentos.

há uma prece
e uma súplica de sangue
e um nome feito voz
em mortalhas de memória
por despir,
ecos do meu querer
feito pranto.

elevam-se voos de feminilidade,
bordados em mel
e na amplidão de asas.

sobre o frenesim de violinos,
sussurros espalham-se pelo chão
em pulsar universal.

desenha-se um círculo de âmbar,
sinto o intangível,
na ausência de ti
construo-te presença
em que só a pele te sabe
aroma recuperado,
abraço impraticável.

no reino de Hades
há jogos de invisibilidade
e cantam os anjos
serpenteando ,
por entre o vibrato das cordas,
a permissão de felicidade.

carregar-te-ei
rumo à vida.
segue-me! segue-me!
segue-me até que a tentação nos condene
e a multidão,
elegendo-se juiz,
nos separar territórios.
dançaremos!
encandeados pela luminosidade
que nos é visão
e cegueira.

depois…
depois, num labirinto de espelhos
a demanda de um rosto
que personifique a memoração
e justifique o crer.
depois…
depois fugirei,
tanto quanto possa
até ao lugar da morte
e aí me finarei
iluminado pela lua,
a única que ousa
roubar-nos em luz,
o sol.