terça-feira, 31 de agosto de 2010

"Os Adeuses" de Juan Carlos Onetti

imagem recolhida aqui

Quando o corpo nos elege como membro duma elite distinta da maioria dos humanos, não é fácil admitir que, um dia, esse mesmo corpo se transformará e nos devolverá à generalidade dos mortais.

“Os Adeuses”, de Juan Carlos Onetti, é um olhar dissecador dum narrador sobre a recusa dum homem em admitir a não eternidade da sua fisicalidade; é o conjunto de intuições de quem vê nessa denegação a irrecuperabilidade da doença. Esse homem é, simultaneamente, um vértice e o centro dum triângulo que o leitor é levado a gerir de acordo com as apreciações do narrador.

Mas esta novela, do autor uruguaio falecido em Madrid, é também uma colecção de lições de vida, um espelho em que subitamente nos vemos reflectidos e, ainda que não envolvidos na narrativa, quase nos sentimos participantes da mesma. A escrita de Onetti é também inspiradora. Amiudadas vezes é possível determo-nos num dos seus períodos, tomá-lo como nosso e iniciar a descrição duma parte da nossa vida.

“Os Adeuses” é um livro para ler no máximo de concentração, tantos são os detalhes que nos são oferecidos e na sua maioria com igual importância para a compreensão da obra.

Na edição de Abril de 2009, da editora Relógio d’Água, “Os Adeuses” tem cerca de uma centena de páginas. Ao chegarmos à última delas, e também por culpa do sugestivo posfácio de Wolfgang A. Luchting, fica-nos a vontade de o recomeçar, para recuperar pormenores que nos terão passado omissos… para nos reencontrarmos em páginas que não escrevemos.



Obrigado João Lima, pela sugestão!!!

sábado, 28 de agosto de 2010

Tardar [talvez demasiado...]


Os meus pensamentos não precisavam esperar para que os invadisses e tomasses em dócil assalto a minha casa senhorial, percorrendo cada corredor dos meus desejos, rumo ao trono que os meus sonhos construíram para ti. As marés cruzaram os tempos, e as luas sucederam-se em ciclos… os meus pensamentos cansaram-se de esperar o teu sinal de amor e a mansão desabitar-se-á de ti, deixando vazio o trono de rainha onde me fizeste esquecer de te sentar…

Sementes



Sinto-me árvore estéril
no pomar do teu amor,
onde me queres fruto
sem lançares sementes…


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Os poetas partiram de férias



Os poetas partiram em férias,
as janelas cerraram portadas
porque as ruas perderam as cores,
as aves confessam-se em voos
esquecidos de separar pelas estações,
as paixões impacientam-se na saliva
das bocas inocentes à espera de dizer,
os rostos anteciparam a seca
das lágrimas sem força para correr,
os peitos curvam-se resignados à ausência
de braços ávidos que os chamem
e as horas deixaram de ser corrigidas
pela fúria de pintar, de sonho, o futuro…

Uma mulher cobriu o rosto com um véu,
olhar velado no segredo expectante
da luz rosácea com que a Primavera acorda as madrugadas,
ou da sinfonia melancólica das folhas em tons outonais
com que os corações se revêem nas palavras
escritas pelos poetas nos ramos da vida.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

No rasto do teu trilho


Caminha silencioso teu olhar
sobre a pele que me escreve;
incógnita passagem
de vestígios indecifráveis…
lágrimas que não molham,
sorrisos de gargalhadas mudas,
nós de garganta deslaçados,
punhos que se desapertam
na arritmia dum coração
cerrado na muralha da descrição.


Só a madrugada me confessa
que a acordas, na ansiedade
de folhear as páginas
dessa pele onde me escreverei…

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Escrever na pele



No trilho para teu coração
semeio palavras
escondidas no teu olhar;

escravo desta certeza,
escrita sentimento no meu peito,
denuncio raízes a que me prendo;

separa-me do teu abraço
uma distância de surpresas,
permuta de mutabilidades
moldadas em vacuidades por deslaçar;

estendo-te as mãos
para que numa pele que se desabotoa
escrevas com tua nudez
a certeza de me quereres
em ti abraçado.


domingo, 22 de agosto de 2010

A saudade


A saudade é um esboço de incerteza
entre o esmorecimento do vivido e a ansiedade de revivê-lo…

Nortaudade


Sopra-me no peito
uma nortada insubmissa de saudade,
rodopiam folhas indomáveis
como dedos inquietos,
desatentos da mão a que pertencem.

Desfocam-se memórias
no afastar de passados concretos,
enevoam-se sonhos
na separação de futuros a realizar.

Só o presente se mapeia
como ilha sem norte
perscrutando a brisa
soprada no teu olhar
para torná-lo bússola
no oceano do tempo
por navegar.

sábado, 21 de agosto de 2010

Metáfora


Despe a metáfora,
usada pela poesia
para vestir o amor,
e vê-te nua
nas palavras com que te olho.

Se uma noite
sentires na pele
o frio da saudade,
enverga as palavras
tecidas pela minha paixão;
eu irei roubar metáforas
aos sonhos dos poetas
e cobrir-me-ei com o olhar
que desenha a vontade,
fogo onde arde o amor
com que me/te escrevo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Beijo escrito


Deixa derreter na boca
as palavras com que te beijo;
quando os lábios te secarem
serei abelha cerzindo no favo
o mel com que me lerás.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Êxtase



Deitam-se os corpos
na névoa dos pensamentos
enquanto a melodia rodopia,
tombam as testas
pelo peso do encontro,
libertam-se gestos hesitados,
penetram-se os olhares
já entre si desflorados,
aproximam-se os lábios
que se tocam,
se molham,
se colam,
se abrem,
para que as bocas se entreguem;
um caminho irreversível
percorre-se sem regresso,
tangem as peles
fustigando-se em carícias,
despem-se dúvidas,
mergulham-se tentações
e um corpo único resta
na neblina da atracção.


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Rotina


Adormecer
no cair do sol
e esperar
pelo estremecer das horas,
até acordar
em poema transformado
na verdade
pela que o coração
sangra. 

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Espera[s]



Não te quedes
no degrau da minha espera

que as palavras
podem ter emudecido
de tanto aguardar;
entra,
abraça a minha vontade,
rasga as cortinas da dúvida
e demora-te neste tempo
que preencho com palavras
enquanto tardas
a tua chegada.


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Refluxo



No refluxo da onda
procuro nos teus lábios
o regresso do beijo
onde me perco
e te encontro
em mar que te ofereces
e mergulho
e me sinto soberano
desse reino
em que te pertenço
e sou maré
na rebentação
da tua boca.


domingo, 15 de agosto de 2010

Poente de Esperança


Talvez sejas
aquele rosto sem nome
um dia desenhado
na sombra dum rochedo,
todas as tardes perdida
para além da rota
que os meus passos alcançam

Talvez tu sejas
aquela voz composta
na sinfonia dum voo
ritmado pelas asas
rendidas a cada anoitecer

Talvez sejas tu
aquele horizonte indefinido
de sonhos inalcançáveis
onde a minha esperança se resigna
ao silêncio que me afunda

… ou então
serás apenas
o poente descendo em mim
inflamando a cada entardecer
a fome de te saber alvorada
a desbravar os meus dias.


sábado, 14 de agosto de 2010

Vagabundo no teu tempo


Sou barco vagabundo
quando o teu tempo passa por mim
e me leva na embriaguez dum voo
onde me julgo sóbrio
na impossibilidade do afastamento.
Tomo o sabor da tua voz
e entre os dedos seguro o segredo
do anúncio que os corpos escutam
antes de se mergulharem.
Mas a tua viagem segue no tempo
e o meu naufraga na tua ausência…

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Aproveitar


Quem não aproveita o pão de hoje,
poderá,
amanhã,
não conseguir transformá-lo em açorda…

O amor


Encontrado na surpresa do caminho,
devemos-lhe a busca quotidiana
dos passos para o percorrer;
é tão longa a vida para amar
e tão curto o amor para viver.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Poema sem destino

imagem recolhida aqui

No braço duma guitarra desprevenida
deitei meu poema magoado,
corriam horas pela noite perdida
gritos dum corpo assolado



Gemeram minhas mãos pelas cordas
feridas de palavras enleadas,
juras de tempo que não bordas
num futuro de orlas abandonadas.

Silencia o trinar das vielas,
soçobra o presente indomado,
cerram-se noctívagas janelas
na melodia que me traduz o fado.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Na margem do teu sorriso


Na margem do teu sorriso
há um cais onde meu olhar aporta,
um brilho
uma gota
lágrima
astro
pousa nos meus lábios
enquanto a tua boca se lhes cola
e o desejo realiza-se.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Passagens


Passas por todos os meus pensamentos
enquanto a tua ausência por mim passa.
Quando a saudade se ausenta,
porque a tua presença passa por mim,
passa por mim a ilusão
de que a tua ausência chegou ao fim…


DEPOIS



Empurras-me para um caminho
que os teus passos não percorrem,
ofereces-me um poema de solidão
escrito com palavras ensinadas,
roubadas na desordem
em que deixas meu coração;
no meu olhar fica a fotografia
das madrugadas em que te antecipavas
para ver o amanhecer em mim
e escrever nos meus lábios ‘bom-dia’…

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O amor


O amor gasta-se. Desaparece. Evapora-se. Como a mais intensa fragrância que fizemos questão de usar todos os dias. Para que tivéssemos a certeza de a saber presente. Para que os outros percebessem porque o sorriso era a estampa do nosso rosto. O amor esvai-se. E quando o procuramos, nem as cinzas em que nos fez arder, encontraremos. Terão sido levadas pelo vento do silêncio e distantes estarão. Dispersas na irrecuperabilidade da união. Não basta escrever o amor. Não basta dizer o amor. É preciso fazê-lo sentir. As palavras são apenas o complemento da certificação. A marca restaurável no instante da ausência ou do desejo maior. O amor precisa da mão para o agarrar. Precisa do olhar para o regalar. Precisa do presente para não se esquecer no passado. 


De que servirá escrever, hoje, que te amo se o teu corpo se ausentou para fora do meu abraço?... e o amor… ter-se-á volatilizado ontem…

Morar em ti



Deixa-me morar em ti
e a cada vez que espreitar o exterior
quero ouvir a tua voz dizer:

"Vem para dentro!
fazer da tua sombra, meu rasto
enquanto o desejo se despe
na desordem das carícias
em que nos descobrimos!"


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

À espera...


Abro nas teclas,
as pétalas dessa melodia
cujo aroma exalo
nas palavras que estendo
sobre esta pauta
sem instrumento onde viver,
à espera que a venhas furtar
com as mãos, onde te roubo
pequenos rubis lapidados
com que acendo
o brilho dum sorriso.

domingo, 1 de agosto de 2010

Leva-me


Leva-me ao jardim
onde adormeces o teu olhar
e deixa-me ser alfobre
onde semeias teus sonhos.

Enologia dum sentimento


Alvorada,
vindima de sonhos
que a noite desabrochou;
corpo,
cesta sem colheita
da saudade que em mim se deita;
boca,
rio sem nascente
onde a sede engole
o último bago dum beijo;
amor,
casta dum sentimento,
derramado num lagar,
que a noite vem colher
para aos sonhos dar de beber.