Acho que
Emerson escreveu algures que uma biblioteca é uma espécie de caverna mágica
cheia de mortos. E esses mortos podem renascer, podem voltar à vida quando
abrimos as suas páginas.
Por falar no
Bispo Berkeley, lembro-me de que ele escreveu que o sabor da maçã não está na
própria maçã – a maçã não se saboreia a si própria – nem na boca de quem a
come. Requer um contacto entre as duas. O mesmo sucede a um livro ou a uma
colecção de livros, a uma biblioteca.
Na verdade, o
que é um livro em si? Um livro é um objecto físico num mundo de objectos
físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então chega o leitor certo e as
palavras – ou melhor, a poesia por trás das palavras, pois as palavras em si
são meros símbolos – saltam para a vida e temos uma ressurreição da palavra.
(…)
Platão fala
de livros num tom algo depreciativo: «Que é um livro? Um livro, tal como um
quadro, parece um ser vivo; e contudo, se lhe perguntarmos alguma coisa, não
responde. Vemos então que está morto.» Para tornar o livro uma coisa viva,
inventou – felizmente para nós – o diálogo platónico, que enuncia as dúvidas e
perguntas do leitor.
JORGE LUÍS BORGES in Este Ofício de Poeta, pág. 9, 10, 13, Teorema, Fevereiro 2002
Era um livro igual a tantos outros, no meio de tantos
outros, numa prateleira duma estante que, por sua vez, era igual a tantas
outras. Nada mais tinha do que palavras. Iguais a tantas outras. Palavras… sinais
de escrita em quantidade finita, cuja arte se reserva aos que lhe concedem uma
arrumação própria, pessoal e diferente das demais.
Uma vez por outra era retirado da estante e sobre as suas
páginas passavam olhares fugazes uns, mais demorados outros. Sentia que as suas
páginas ganhavam vida quando um olhar permanecia mais tempo e lhe personalizava
as palavras. Voltava a ser arrumado e esbatiam-se aquelas ilusões efémeras de
vida.
Um dia, umas mãos diferentes seguraram-no. Sentiu um olhar
distinto sobre a sua lombada. Era especial a forma de o folhear. Havia uma vida
diferente a dar sentido às suas palavras. Quando voltou a ser colocado na
prateleira, sentiu-se único entre tantos exemplares, há tanto tempo, iguais a
si.
Poucos dias depois, as mesmas mãos voltaram para o escolher,
o mesmo olhar atribuiu novos significados às suas mesmas palavras e quando as
suas páginas foram fechadas, sentiu-se ficar aberto para poder sentir cada raio
de sol a beijar-lhe cada parágrafo, a iluminar-lhe cada linha, a aquecer-lhe
cada vocábulo.
Aquela sinergia repetiu-se dia a dia. E ele empenhava-se por
enfatizar cada palavra. A cada dia procurava uma nova cor para cada uma delas. A
cada dia sentia rasgar-se-lhe um sorriso em cada sorriso secreto que nascia no
peito daquele olhar que o lia e que a partir dele traçava voos onde só os
sonhos sabem planar.
Deixou de ser devolvido à estante. Passou a ficar num local
diferente, especial. Num local onde conseguia ouvir um bater ritmado duma
máquina que, de tempos a tempos, se espaçava por força dum suspiro mais
prolongado. Nas suas próprias páginas era possível testemunhar um pulsar
marcado pelo fulgor, pelo fascínio, pela realização.
No silêncio permanecia um diálogo entre o que estava escrito
e o acto de ler. Uma permuta contínua mantinha acesa uma chama entre as
palavras que se desejavam lidas e o olhar que as desejava procurar… entre a
necessidade de dizer que tinham sido escritas para aquele olhar e vontade de
saber que eram unicamente para aquele olhar, as linhas ali impressas.
As suas páginas passaram a ficar abertas. Assim se detinha o
olhar que as lia. Como se não houvesse tempo para desperdiçar. Como se cada
segundo que não fosse consumido na leitura representasse uma perda
irrecuperável. A ansiedade contava o tempo em falta para o próximo momento de
partilha. Por mais repetidas que fossem as palavras, por mais duplicadas que as
leituras se fizessem, renovava-se a vontade do querer dizer, do querer saber,
do querer descobrir, do querer confirmar. Uma aprazível sensação confundia a
realidade. Ter-se-ia o mundo encerrado nas suas páginas? Ou seria aquele olhar o
do mundo inteiro? Nada mais existia para além daquela espontaneidade que mantinha
tensa a ligação entre as palavras e o olhar. Não existia espera. Tão só a
expectativa de saber quando chegar.
Uma noite, as suas páginas estavam, como em tantas outras,
abertas na avidez de serem lidas. Passaram longos minutos sem que o olhar
chegasse. Reprimiu-se em incontáveis razões para não se sentir esquecido.
Obrigou-se a compreender, a tolerar, a admitir que se excedia nas esperanças
com que assumia a realidade. Mas estranhou e não conseguia compreender por onde
se esfumara o que ainda ontem sentira como necessidade. Temeu. Perderam
coloração, sonorização, sabor, projecção, intenção, as suas palavras. Sem que
percebesse porquê sentiu pobres as suas palavras que aquele olhar enriquecera.
E ainda que as suas páginas se mantivessem abertas sentiu-se fechar numa
história impenetrável, inviolável, solitária, não partilhável.
Sentiu-se frio e estéril quando o olhar regressou.
Pressentiu procurar-lhe a vida que ficara distraída, mas sentia-se lenha húmida
que tentavam atear. O lume tinha dificuldade em pegar. Havia uma vontade
racional a tentar devolver o ardor ao que antes se incendiava por urgência. Não
conseguiu restituir o entusiasmo das palavras à sede do olhar que o tinha mergulhado
na insaciabilidade. Sabia que precisava da vida do olhar para que as suas
palavras tomassem vida. Era nesse fogo que as suas palavras ardiam para aquecer
o olhar. Como a lenha não arde sem lume, as páginas dum livro são um conjunto
de palavras inanimadas se não sentirem a vontade de serem lidas. E um olhar
passará sobre elas sem lhe descobrir a intenção de ali estarem porque foram
escritas para serem lidas por ele. São os olhares que dão vida às palavras. Será na necessidade de serem lidas que as palavras se escrevem.