Desta vez, foi Mafalda Arnauth que me levou de regresso ao ciclo
de concertos íntimos que o Teatro da Trindade e a Fundação INATEL vêm
promovendo nos finais de tarde, de três quartas-feiras de cada mês. Como a
própria referiu, terá sido uma fuga rápida ao projecto Rua da Saudade, num regresso ao
estilo que mais lhe pertence. Nunca a ouvira ao vivo, mas como apreciador da
sua voz e de algum do seu reportório, não poderia desaproveitar a oportunidade.
Mafalda Arnauth tem uma figura que se impõe quando pisa o palco.
Pareceu-me que a conversação com o público não será dos seus predicados mais
espontâneos. Percepção errada ou decorrente do facto de que estes concertos possuem
tempo marcado. Contudo, denotou um notável profissionalismo ao saber usar os
minutos com precisão e sem exteriorizar qualquer ansiedade em geri-los. Perante
uma plateia esgotada que se alargava simpaticamente pelo balcão, as primeiras
interpretações lembraram temas tradicionais como Hortelã Mourisca, Saudades de Júlia Mendes ou Triste
Sina.
Mafalda Arnauth é autora de muitos dos fados que canta. Porém,
os que elegeu para apresentação neste concerto, privilegiaram palavras de
outros. De Vitorino, ofereceu-nos Tinta
Verde, de Manuel Alegre, Flôr
de Verde Pinho, antes de cantar os seus próprios versos em Da palma
da minha mão. Dois instantes mágicos estavam reservados, sensivelmente,
para o meio da actuação: primeiro, uma interpretação integralmente musical
pelas mãos de Luís Guerreiro na guitarra portuguesa, Marco André Oliveira na
guitarra clássica e Fernando Júdice no baixo acústico. O que é possível ler nas
cordas de três guitarras que se acompanham, se estimulam, se separam mas nunca
deixam de, juntas, nos fazer correr pelas vielas lisboetas, pelas correntes do
Tejo, pelos voos das gaivotas aterrando em memórias que a história não esquece;
em seguida O mar fala de ti,
um lindíssimo poema de Tiago Torres da Silva, na quarta-feira, introduzido pela
fascinante arte de Fernando Júdice, com que Mafalda Arnauth arrepiou o mais adormecido
sentir. No percurso final a viagem fez-se por fados mais popularizados, como a Marcha do Centenário ou Vira da minha rua,
instigando a participação dos espectadores.
Na dicção, Mafalda Arnauth tem um ‘carregar’ nos erres que para
alguns é uma falha e para mim uma característica que a distingue e a
identifica. Mafalda Arnauth tem o privilégio de encantar a cantar. Sabe e faz
questão de cantar a dor do amar lusitano. Rapta-nos no sentimento com que se
alia ao trinar das cordas das guitarras, como lágrimas e sorrisos que se
mesclam na face de quem se emociona. Mafalda Arnauth canta com a agitação
interior de quem sente e se apaixona pelo que faz, e inunda-nos nesse rio de
sensibilidades que desagua num oceano tão português que fala de todos nós, os que
acreditamos que vale a pena o amor, mesmo que magoe, desde que um dia acenda o
sol, num céu de lágrimas.
1 comentário:
Ou seja... uma quarta-feira feliz!
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